zoom

Elza Soares: “Até quando eu puder, eu vou cantar”


Em entrevista ao Midiorama, Elza Soares, uma das maiores vozes do país, fala sobre a vida, carreira e comenta a realidade dos negros e das mulheres no Brasil

“Até o fim eu vou cantar/Eu quero cantar/Eu quero é cantar/Eu vou cantar até o fim.” Esses são alguns dos versos de “A Mulher do Fim do Mundo”, uma das músicas do álbum de mesmo nome de Elza Soares, lançado no final do ano passado; o primeiro de sua carreira de inéditas. O trabalho idealizado pelo produtor Guilherme Kastrup foi eleito o “Melhor Álbum de 2015” pela revista Rolling Stone e apresenta canções que conversam com temas atuais, como a transexualidade, violência de gênero e a realidade das favelas brasileiras.

E os versos de “A Mulher do Fim do Mundo” refletem o desejo da própria cantora, que afirma querer cantar “até quando puder”.

“Quando eu começar a desafinar, eu paro, mas ainda não. Eu tô cantando bem à beça, graças a Deus. Eu quero cantar até o fim”, contou Elza em entrevista por telefone ao Midiorama.

Mais de 60 anos desde que surgiu no programa de Ary Barroso, na Rádio Tupi – na época, uma jovem pobre que sonhava viver da música –, a artista não parou mais de cantar, mesmo com as perdas e dores que marcaram sua vida.

“Eu sempre digo que a música é o sedativo da alma, que é a medicina da dor. A música é tudo”, disse a estrela.

Seu mais recente show, A Mulher do Fim do Mundo, já passou por Fortaleza nos dias 16 e 17 de janeiro, chega a Natal hoje (22) e vai a Salvador no dia 23. A turnê pretende passar ainda pelas principais cidades da América do Norte e da Europa.

Em entrevista ao Midiorama, Elza Soares, que dispensa a formalidade de ser chamada de “senhora”, falou sobre seu mais recente disco, a realidade dos negros e das mulheres no Brasil, vida e carreira:

O álbum começa com a música “A Mulher do Fim do Mundo” e você canta “até o fim eu vou cantar, eu sou mulher do fim do mundo. Me deixem cantar até o fim”. Esse é também um desejo da Elza? Continuar cantando para sempre?

Até o fim. Até quando eu puder, eu vou cantar. Quando eu começar a desafinar, eu paro, mas ainda não. Eu tô cantando bem à beça, graças a Deus. Eu quero cantar até o fim, porque eu acho que a música, eu sempre digo que a música é o sedativo da alma, que é a medicina da dor. A música é tudo.

“A Mulher do Fim do Mundo” é seu primeiro álbum de inéditas. A senhora disse uma vez que o motivo é porque tudo tem seu tempo na vida. É assim que a Elza encara a vida?

Eu acredito que sim. Tive que esperar esse tempo todo pra poder ter esse CD de inéditas. Eu tô muito feliz com esse CD, mas muito, muito feliz. Talvez ninguém saiba o quanto eu estou feliz com esse trabalho.

E o que é “uma mulher do fim do mundo”?

[É] A mulher do fim do mundo que viveu, que vive, que passa por problemas sérios, dores, alegria… Enfim, tudo isso. Ela consegue ser uma mulher do fim do mundo, ela consegue ter uma visão ampla, uma visão da coisa que tá acontecendo, do que vai acontecer. Que eu vi que tem coisa acontecendo, que você não pode sair falando por aí. Há o momento certo de falar. E eu acho que a mulher do fim do mundo é isso. Ver, ouvir e não falar muito.

E a Elza é essa mulher?

Completamente. Completamente essa mulher que vê, ouve, que sente, que sabe, mas a “boca chiusa” (termo italiano que significa cantar com a boca fechada) é bem melhor.

Suas músicas têm um teor político forte. A Nina Simone, grande cantora americana negra, disse que escolhia refletir a época em que vivia em sua música. É uma escolha pessoal sua também?

Lógico. Não quero imitar ninguém. Eu faço isso porque sou negra mesmo. E como mulher negra, eu acho que eu tenho a obrigação de falar, de abrir a boca, de denunciar o que não tá bom. Não só para mim, mas para todas as mulheres.

E no que diz respeito às mulheres brasileiras: você acha que houve uma melhora na vida delas?

Houve uma perspectiva de melhora, porque hoje ela pode falar, pode gritar, pode denunciar. Mas ainda falta muita coisa pra mulher brasileira. Falta muita coisa. A mulher que trabalha igual ao homem não tem um salário igual ao do homem. Ela é mulher, ela é a mãe. Temos que olhar pra mulher com mais carinho, com mais respeito e mais dignidade.

A lei Maria da Penha completa 10 anos em 2016 e a senhora canta sobre a violência doméstica na música “Maria da Vila Matilde”. É seu objetivo incentivar as mulheres a denunciarem esse tipo de violência?

Essa música é uma denúncia, porque a mulher passa por agressão dentro de casa e não denunciava, ela não denuncia. E tem que abrir a boca, tem que denunciar mesmo. Não pode viver como escrava, não pode viver como um bicho preso. Tem que gritar, tem que denunciar mesmo, mas mesmo.

Num show no Rio de Janeiro, durante a música “A Carne”, você fez uma menção ao assassinato daqueles cinco jovens negros pela polícia carioca. A carne do negro continua sendo mais barata? O que sentiu quando soube da notícia?

Eu chorei, chorei a tarde toda. Porque eu acho que é incrível ainda existir esse tipo de coisa, entendeu? E ainda não criamos uma medicina para curar essa doença maldita, que é o tal do preconceito. Precisa encontrar algum remédio pra livrar a gente desse mal.

 

Esses episódios tristes ainda são comuns no nosso país. Ainda assim, a senhora acha que houve alguma melhora na vida da população negra brasileira?

Tem que melhorar o salário da nossa gente. Tem que melhorar o salário, tem que educar mais, estudar mais, para que a gente possa ter dignidade. A polícia também não tem um salário digno, não tem nada.

A falta de um debate nacional sobre o racismo tem atrapalhado o progresso do país de alguma maneira?

Eu acho que falta tudo. Falta um pouco de pudor. Dentro da religião eu não sei o que falta, mas falta tudo. Isso é o que eu acho que é indigno: essa falta de tudo.

Há um conservadorismo no Brasil, com políticos ligados a religiões no poder. A senhora acha que isso atrapalha as conquistas das mulheres, negros e LGBTs?

Dependendo da cabeça das mulheres, né? Depende da cabeça de cada um. A mulher tem que ter cabeça, tem que ser ela mesma. Aí, depende muito da mulher.

Em “Benedita” a senhora canta sobre a realidade das travestis no Brasil. Por que a senhora resolveu incluir essa música no álbum?

A homofobia/transfobia é uma coisa terrível. Acho que é um trabalho bem maravilhoso, falando da liberdade também. E falando também da droga, né? É forte.

A senhora é uma das poucas artistas brasileiras a falar abertamente sobre o racismo e outras mazelas sociais brasileiras. Acredita que há um medo da classe artística em fazer o mesmo?

Sabe o que acontece? Não existe nada que identifique o negro. A próxima geração eu não sei como será, porque não há nada que mostre que você é negro, que você é digno, que você vai estudar, que você vai ter todos os direitos. Não temos isso; só temos cabelo liso. E isso é muito difícil para a criança negra que vai surgindo agora. Agora tinha que ter algo, que não é preciso nem fazer essa distinção, mas que pudesse mostrar que a criança negra vai crescer e ela vai ter o mesmo valor.

Quem inspira a Elza Soares hoje em dia?

Acho que a Elza mesmo. A Elza me inspira muito. A Soares, né? E a vida me inspira muito também. Basta você olhar para a vida e ver o que tá acontecendo que você se identifica com tudo o que tá acontecendo.

Você é conhecida não só pelo seu talento, mas por sua força e determinação. De onde a Elza tira tanta força?

A necessidade me obriga. O tempo que você vai ficar chorando, tem que ir à luta. Você não tem que chorar, tem que buscar. Não tem que retroceder, tem que caminhar, tem que ir em frente. E é o que eu faço. A necessidade me obriga.

Você veio de uma realidade muito difícil e que ainda é, infelizmente, muito comum para milhares de brasileiros, em especial, homens e mulheres negros. Mas a senhora conseguiu reverter o quadro. Há algum conselho que você daria a essas pessoas?

Uma andorinha só não faz verão. Havia necessidade sim. [E] uma pessoa sozinha pode falar, ela pode sentir tudo, ela pode se dedicar, mas falta força. Falta gente unida para fazer a coisa mais forte.

Eu queria que a gente falasse do passado: quando você era menina, e um dia despertou para sua voz, você imaginava que iria fazer esse caminho que você percorreu até hoje?

Mas nem nunca. Nunca pensei por uma razão: porque cantar na minha época era ser puta. Mulher era ser puta. Minha mãe dizia “Deus me livre, não quero puta na família”, eu falei: “então, já tem uma. Não vou deixar de cantar porque eu gosto, porque eu amo.” Eu fui embora, eu fui em frente, porque tudo o que eu queria fazer era cantar.

Qual o saldo hoje, olhando de trás para frente? Entre os buracos que você teve que passar, as vitórias e as glórias. Você acha que tá empatado?

Eu acho que o saldo é bem positivo. Tem coisa do passado que eu esqueço porque quero esquecer. Mas acho que a gente vivendo o hoje, o hoje, pra mim, é muito feliz. Não posso saber de ontem, porque esqueci como que era. Acho que o saldo tá bem feliz.

Você acredita em reencarnação?

Acredito.

Se tivesse a oportunidade de escolher, voltaria na pele e numa vida parecida com a que viveu a Elza Soares ou escolheria uma outra?

Se eu viesse com a sabedoria, eu gostaria de ser a Elza, porque outra eu não sei como seria. Pode ser uma covarde. Pode ser uma fraca. Eu prefiro a Elza forte.

Você sente falta de alguma coisa hoje? Algo ou algum momento que você viveu que gostaria de repetir?

Não, não sinto falta, não. Eu gostaria de ter meus filhos. Todos. Isso é uma coisa que eu gostaria, se pudesse. Só os meus filhos.

[Em julho do ano passado, Elza perdeu seu filho Gilson Soares, aos 59 anos, por complicações de uma infecção urinária. Ele foi o terceiro filho que a cantora perdeu. Ela é mãe de mais quatro: João Carlos, Gerson, Dilma e Sara]

Falando desse momento que você tá vivendo agora: a gente acabou de saber que sua canção “Maria de Vila Matilde”, do recente disco A Mulher do Fim do Mundo, foi eleita a “Melhor Música” e o álbum foi “Melhor Disco” pela revista Rolling Stone. Então, não param de existir essas condecorações e prêmios. Prêmio é bom, mas mexe um pouco com o ego da gente. Você imaginava que nessa altura e esse trabalho daria tantas glórias? Você sente de alguma maneira que a justiça foi feita em relação ao seu trabalho ou acha que isso é fruto desse trabalho apenas?

É o resultado do trabalho, é um reconhecimento do trabalho também. Mas, me põe tão pequenininha cada prêmio que eu ganho. Eu vou me encolhendo…

Ao invés de ficar envaidecida…

Eu fico pequenininha e pensando “meu deus, tudo passa.”

Se você tivesse que dar um conselho para uma menina que vive a dificuldade de querer vencer com sua arte como cantora, o que você diria para ela?

Eu diria que a simplicidade seria um futuro mais rico. Simples. E que soubesse segurar isso com as duas mãos. E não soltar. Porque existe uma frase que diz que “cair é do homem e levantar é de Deus”. Então vamos embora.

*Por Artur Francischi, do Prosa Livre, e Horácio Brandão, do Midiorama

 

 


Deixe seu comentário


Envie sua matéria


Anexar imagem de destaque