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Glaucia Nasser expande o sertão de João Pernambuco em espetáculo feito sob direção musical do violonista Paulo Dafilin


Artista lança registro audiovisual “João Pernambuco – Coração do violão” em que joga luz sobre a riqueza inexplorada da obra do compositor pernambucano

Mineira, a cantora e compositora Glaucia Nasser sentiu na alma que “o sertão é dentro da gente”, como sentenciara o conterrâneo escritor Guimarães Rosa (1908–1967) no célebre romance em que enveredou pelo grande sertão brasileiro. O sentimento brotou forte entre julho e agosto de 2023, quando a artista adentrou as veredas do sertão pernambucano e ali conheceu o Brasil de dentro, o povo que valoriza ser tão amoroso e hospitaleiro.

A imersão de Glaucia Nasser em municípios como Inajá (PE) e Jatobá (PE) tinha como objetivo conhecer e documentar o sertão e o Pernambuco de João Teixeira Guimarães (2 de novembro de 1883 – 16 de outubro de 1947). Imortalizado com o nome artístico de João Pernambuco, o compositor e violonista deixou obra genial, mote e coração de espetáculo feito pela cantora sob a direção musical do violonista Paulo Dafilin e a direção artística de Julio Cesarini.

Captado em 18 e 19 de maio de 2024 no Teatro de Santa Isabel, palco histórico do Recife (PE), o espetáculo “João Pernambuco – Coração do violão” tem o registro audiovisual disponibilizado neste mês de novembro de 2024, legando para a posteridade mais um trabalho importante de resgate da cultura brasileira realizado por Glaucia Nasser e Instituto João Pernambuco com coprodução da Fundação Brasil meu Amor (FBMA).

Não por acaso, Glaucia Nasser é a intérprete solista do espetáculo “Um reencontro com o Brasil”, construído com base na arquitetura modernista da era de Juscelino Kubitschek (1921–1976), o JK, presidente do Brasil na década de 1950, em realização da FBMA.

O reencontro agora é com João Pernambuco. E a importância do espetáculo / álbum “Coração do violão” reside no fato de João Pernambuco ter sido gigante da música brasileira que ficou praticamente esquecido até ser trazido à tona por Glaucia Nasser neste projeto iniciado em 2023 com a edição do EP também intitulado “João Pernambuco – Coração do violão”. Com seis músicas, o EP apresentou letras inéditas escritas a partir de músicas de João Pernambuco em expansão ampliada com a criação do espetáculo.

João Pernambuco foi muito mais do que o criador da melodia do hino caipira “Luar do sertão” (1910) em feito omitido pelo parceiro letrista do compositor no tema, Catulo da Paixão Cearense (1863–1946), mas afiançado e creditado por historiadores e pesquisadores da música brasileira.

Menino do sertão, nascido em povoado que daria origem à cidade de Petrolândia (PE), João Pernambuco migrou para a cidade do Rio de Janeiro (RJ) no início do século XX em 1904. Em terras fluminenses, onde aportou com 21 anos, o músico se aperfeiçoou no toque do violão – a ponto de ter se tornado um ás do instrumento – e construiu obra modernista que, mesmo com o compositor trazendo o sertão dentro dele com toda a bagagem sonora do agreste pernambucano, sobre transitar por gêneros como choro, maxixe e valsa (herança da cultura musical europeia).

Dentro desse universo, João Pernambuco foi tão importante para o choro quanto o também progressista violonista Garoto (1915–1955) foi para a bossa nova, embora haja um desconhecimento dessa importância de João, muito menos da ligação do violonista com outro gênio desbravador da música brasileira, Pixinguinha (1897–1973). Quem fez esforço heroico para jogar luz sobre João Pernambuco, tirando da escuridão a obra do artista, foi o jornalista e pesquisador musical carioca (mas residente na Alemanha) José Leal, falecido em 2023.

Grande entusiasta do legado de João Pernambuco, no qual detectava a alma de um compositor popular, Leal foi quem acendeu em Glaucia Nasser a ideia desse valioso e necessário projeto em torno da obra do compositor e violonista quando convidou a cantora para gravar uma música de Pernambuco, “Sons de carrilhões”, tema instrumental lançado pelo autor em disco de 1926. Glaucia Nasser deu voz a uma letra inédita (de José Leal) que pode ser ouvida na primeira faixa do já mencionado EP “João Pernambuco – Coração do violão” (2023), lançado no do ano passado como a primeira parte do projeto.

A partir dessa gravação, na qual a cantora navega com naturalidade pelos tons agudos da melodia requintada, Glaucia Nasser investiu na ideia de criar letras para temas de João Pernambuco. Foi assim que “Graúna”, choro já abordado por ases como Jacob do Bandolim (1918–1969) e Raphael Rabello (1962–1995), ressurgiu no canto sagaz de Glaucia com a letra escrita por Paulo Dafilin. Já o tema “Caminho do sertão” foi trilhado pela intérprete com a letra póstuma escrita por José Leal.

No EP, uma música então inédita, “Raízes e frutos”, composta por José Leal com Paulo Dafilin para homenagear João Pernambuco, norteia o conceito do espetáculo ora lançado em gravação audiovisual. No espetáculo, Glaucia Nasser segue roteiro que extrapola o cancioneiro de João Pernambuco, expondo não somente as raízes da obra do compositor, mas também os frutos. Tudo com um canto refinado. “Fiz muito estudo de voz. A técnica tinha que ser apurada, mas tinha que vir junto com o sentimento das músicas”, resume Glaucia Nasser.

Nesse caminho do sertão, regido pela poética nordestina dos compositores da região, Glaucia Nasser vive uma experiência de acolhimento pelo povo de Pernambuco – representado pela plateia do espetáculo – enquanto dá voz a compositores pernambucanos como Alceu Valença (cujo coco “Coração bobo”, de 1980, abre o roteiro), Antonio Maria (1921–1964), Dominguinhos (1941–2013), Luiz Bandeira (1923–1998), Luiz Gonzaga (1912–1989) e Rosil Cavalcanti (1915–1968), incursionando também pela arretada Paraíba de Jackson do Pandeiro (1919–1982) e Vital Farias. Sem esquecer as sementes plantadas pelo compositor carioca Alfredo da Rocha Vianna Filho (1897–1973), o Pixinguinha, cuja irmandade com João Pernambuco precisa ser lembrada para que se compreenda a grandiosidade da obra do compositor que foi além do estado que carregava orgulhosamente no sobrenome artístico.

Na cena do espetáculo “João Pernambuco – Coração do violão”, Glaucia Nasser é iluminada pela luz de Grissel Manganelli e emoldurada pelo cenário idealizado por William Zimolo e Julio Cesarini. No palco, além da intérprete solista, há uma big banda formada pelos músicos Cassio Ferreira (flauta e saxofone), Chrys Galante (percussão), Fernando Nunes (baixo), Guiza Ribeiro (guitarra), Jonas Mancaio (violoncelo), Leandro Vieira (percussão), Pedro Cunha (piano e acordeom) e Thiago Gomes (bateria), todos sob a batuta do diretor musical Paulo Dafilin (violão).

O espetáculo “João Pernambuco – Coração do violão” expande o sertão do compositor como uma declaração de amor da artista ao Nordeste do Brasil, em especial ao povo pernambucano. Não por acaso, no roteiro que dá voz a José Leal através de depoimentos exibidos no telão, a cantora interpreta o frevo “Voltei, Recife” (1958), um dos standards da obra de Luiz Bandeira, logo após fazer “Coração bobo” (1980) bater com uma zabumba imaginária no peito.

Quando trilha “Caminho do sertão” na cadência do xote que também ilumina o clássico “Luar do sertão”, Glaucia Nasser insere as músicas de João Pernambuco em roteiro que molda painel rico da música da nação nordestina. Ali, no show, louvado em texto dito por Cynara Leão, João Pernambuco está alocado naturalmente entre grandes compositores da região como Rosil Cavalcanti, de quem a artista dança o xaxado da Paraíba ao cantar “Sebastiana” (1953).

Esse é o mérito e o valor do espetáculo: mostrar Glaucia Nasser cantando a obra sofisticada de João Pernambuco de forma tão corriqueira quanto sempre se cantou as músicas de Luiz Gonzaga ou de Dominguinhos, cujo xote “Eu só quero um xodó” (1973) reverbera ao fim do espetáculo. No roteiro, João está ali, entre os grandes. Como um dos maiores desses grandes, o que sempre foi, mas pouco sabem. Daí que, na costura fina do roteiro, a poesia de “Sons de carrilhões” se afina com a lira melancólica de “Ai, que saudade docê” (Vital Farias, 1983) enquanto “Cabocla de Caxangá”, música creditada à parceria de João Pernambuco com Catulo da Paixão Cearense, ganha um toque de chula baiana no arranjo de Paulo Dafilin.

No amplo eixo estético do roteiro, a cantora também mergulha nas águas pernambucanas da ciranda, dando voz ao maior standard do gênero, o tema tradicional “Quem me deu foi Lia” (Antonio Baracho), com citação de versos da marcha-rancho “Noite dos mascarados” (Chico Buarque, 1967).

Nas entranhas do sertão e da alma nordestina, o voo de “Xoxô meu sabiá” – tema de autor desconhecido que soa como peça do folclore popular – precede a lembrança de que a escassez de água em parte da região, tema infelizmente ainda atual, gera a sina eternizada nos versos de “O último pau de arara” (Venâncio, Corumba e José Guimarães, 1956) e “Pau de arara” (Carlos Lyra e Vinicius de Moraes, 1964), números feitos por Glaucia Nasser com a adesão da voz grave e da sanfona precisa de Cezzinha, músico que descende da linhagem nobre de Dominguinhos.

Como João Pernambuco extrapolou as fronteiras nordestinas, mesmo sem jamais tirar o sertão de dentro dele, Glaucia Nasser canta dois temas de Pixinguinha para marcar a associação e a proximidade de João com este gênio carioca que assentou as bases da música brasileira. As duas músicas escolhidas, a valsa “Rosa” e o choro-canção “Carinhoso”, foram compostas em 1917, sendo que a cantora revive “Carinhoso” com a letra posterior de Braguinha (1907–2006), apresentada em 1937.

Ainda em terras cariocas, habitadas por João Pernambuco em parte expressiva da vida do compositor e violonista, a cantora cai no samba “Com que roupa?” (1929), uma das obras-primas do bamba Noel Rosa (1910–1937). Na sequência, Glaucia Nasser põe bebop no samba com o canto de “Chiclete com banana” (Gordurinha e Almira Castilho, 1959), um dos maiores sucessos de Jackson do Pandeiro.

Entre raízes e frutos, o espetáculo “João Pernambuco – Coração do violão” faz em essência uma declaração de amor ao Pernambuco e ao sertão de João. Não por acaso, ouve-se novamente versos do frevo “Voltei, Recife” após o canto do xote “Eu só quero um xodó” (Dominguinhos e Anastácia, 1973), número que em tese encerraria o espetáculo não fossem os pedidos de bis, feito com a reprise de “Luar do sertão”, a obra-prima mais popular do cancioneiro de João Pernambuco.

Ali, como em tantos outros momentos do espetáculo e da jornada de Glaucia Nasser pelas veredas de João Pernambuco, o grande sertão está dentro da alma dessa artista mineira de coração brasileiro.

Texto de Mauro Ferreira

Outubro 2024


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